A braços com uma insurgência armada desde Outubro de 2017, Moçambique é um país “já suficientemente fragmentado do ponto de vista social” e que corre risco de o ser também no plano político. O alerta é do sociólogo ítalo-moçambicano Luca Bussotti, que encontra em Cabo Delgado uma “configuração de interesses” que cria condições para o efeito.
Texto: Amad Canda
Luca Bussotti esteve no último sábado, 10 de Agosto, no “Pensar em Comum”, podcast do filósofo e reitor da Universidade Técnica de Moçambique (UDM), Severino Ngoenha. O mote era reflectir sobre “o que está realmente acontecendo em Moçambique?”, o que levou a que o tema Cabo Delgado, ainda que não tenha sido o primeiro a ser discutido, ganhasse grande protagonismo.
Tomando em consideração a proliferação de movimentos separatistas em África, de que são exemplo a guerra que deu azo ao nascimento, em 2011, do Sudão do Sul e o conflito no leste da República Democrática do Congo (RDC), Ngoenha trouxe ao lume a insurgência no Norte de Moçambique, deixando nítidos temores de que venha a produzir os mesmos resultados que a segunda guerra civil sudanesa produziu.
Secundou-o Luca Bussotti, que considera estarem reunidas as condições para uma fragmentação territorial e política, ainda que acredite tratar-se de uma hipótese remota. “Não podemos ser cegos. Eu acredito que agora deve haver entre cinco a seis mil militares do Ruanda [em Cabo Delgado]. Não sei qual é a dimensão do exército de Moçambique, mas não é muito maior do que os efectivos que neste momento estão em Ruanda”, observou o académico, para quem o exército ruandês teria capacidade de controlar o território de Cabo Delgado, sobretudo depois da retirada da Missão da SADC em Moçambique (SAMIM).
Na perspectiva de Bussotti, a presença da SAMIM garantia um “controle mínimo de parceiros” que comungam das mesmas preocupações que Moçambique, atendendo e considerando que uma fragmentação do país teria impacto igualmente nos países à sua volta.
Para além deste aspecto, o professor universitário chama a atenção para a existência de um grande apetite pelos recursos de que a província dispõe. “Tem interesses franceses (Total Energies); em Montepuez há interesses ingleses (Montepuez Ruby Mining); e em Balama temos os australianos (Syrah Resources)”, detalha, antes de salientar que esta “configuração de interesses económicos extremamente forte” pode levar a que alguém que está no desespero pense nesta solução “radical e desesperada”, o que criaria caos num país que “já é suficientemente fragmentado do ponto de vista social”.
“Estamos num clima de guerra quente”
Os actuais contornos da geopolítica, marcada por confrontos das grandes potências mundiais, despoletaram uma questão no diálogo entre Severino Ngoenha e Luca Bussotti: Não estará África, à semelhança do que sucedeu na guerra fria, a ser transformada num palco de conflitos alheios?
Bussotti não só não tem a mínima dúvida, como também acredita que o que se está a passar nos dias que correm é ainda pior. “Estamos num clima de guerra efectiva, de guerra quente”, afirma o pesquisador, que vê nisso um regresso ao século passado, quando a guerra era um instrumento passível de ser usado na política, sobretudo pelas grandes potências.
Na opinião deste académico, a China, focada em fazer negócios com o mundo, em especial com a África, é a única entre as superpotências com uma postura diferente, na medida em que “não faz guerras”. As restantes, estas, mantêm o modus operandi, assim como o poder de definir os timings em que a paz deve prevalecer. O exemplo disso é o recente acordo entre a RDC e Ruanda, alcançado sob mediação angolana.
“Por que foi assinado um acordo em Luanda entre RDC e Ruanda? É porque, neste momento, o maior investimento que os Estados Unidos da América (EUA) têm em África é o Corredor de Lobito, que liga Angola, Zâmbia e RDC. Eles [os EUA] não querem problemas no Congo. Portanto, certamente Paul Kagame vai parar de financiar o M23 porque os EUA querem estabilidade lá”, vaticina.
“Em Moçambique, todo o sistema é emanação da Frelimo”
Moçambique é um país onde a corrupção endémica desponta entre os principais factores da pobreza e das profundas desigualdades sociais, com um grupo selecto a viver na opulência e uma maioria massacrante na míngua. Inquietado por este fenómeno, o anfitrião do “Pensar em Comum” convidou Luca Bussotti a partilhar a experiência de combate à corrupção na Itália.
Bussotti destaca os “heróis da justiça” – juízes, procuradores e outras personalidades, algumas das quais cruelmente martirizadas – como tendo sido fundamentais para reduzir o poder das organizações mafiosas. Nesse processo, sublinha o académico, a opinião pública desempenhou um papel extremamente relevante.
Olhando para Moçambique, o sociólogo considera que a opinião pública está consciente da necessidade de combater a corrupção, mas encontra na generalizada partidarização das instituições do Estado um grande empecilho. “O grande problema em Moçambique é que todo o sistema, a partir do aparato judicial, é uma emanação da Frelimo. Apesar da Constituição, do princípio da separação dos poderes, todos os poderes do Estado são uma emanação da Frelimo”, radiografou o intelectual, que ainda assim não perde as esperanças.
“Conheço muita gente cansada desta situação”, anotou, em referência a membros de órgãos de soberania e da sociedade civil que respeitam a Constituição.
De forma efémera, Ngoenha e Bussotti ainda se debruçaram sobre aspectos de natureza económica, com ambos a convergirem na ideia de que é preciso criar condições para o crescimento das Pequenas e Médias Empresas, que, segundo dados estatísticos, representam 98% do tecido empresarial nacional. Com efeito, defendem a substituição de “bancos de exploração” por bancos com vocação para alimentar a economia. A isso deve associar-se, conforme vinca Luca Bussotti, a desburocratização dos processos de criação de empresas e estabelecimento de negócios.