O Sistema Nacional de Saúde (SNS) nunca foi propriamente robusto, mas já foi mais capaz de responder aos desafios que se lhe impõem. No entanto, esta capacidade tem vindo a deteriorar-se ao longo dos anos, especialmente nos últimos tempos, e já não parece exagero falar em colapso. À falta de quase tudo nos hospitais, juntam-se as sucessivas paralisações das actividades dos profissionais de saúde, perante a aparente falta de soluções do Governo.
Texto: Dossiers & Factos
Os moçambicanos estão numa verdadeira situação de abandono a nível de saúde, evidenciada pela incapacidade de proporcionar serviços com o mínimo de qualidade e eficiência exigíveis. Se em tempos se lamentava a falta de equipamentos sofisticados para operações mais complexas, hoje nem o básico existe.
Cada vez mais moçambicanos se dirigem às unidades sanitárias em busca de assistência médica e saem de lá sem medicamentos, porque inexistentes. Sempre que confrontadas com esta situação, as autoridades de saúde – incluindo o ministro Armindo Tiago – tratam de minimizá-la, garantindo, por vezes em tom insolente, que não há escassez de medicamentos.
Só que a narrativa governamental não resiste à prova dos factos, e uma simples visita às unidades sanitárias – exercício que Dossiers & Factos fez várias vezes – derruba-a com estrondo. Vários outros órgãos de informação também têm reportado fartamente este fenómeno, que só parece irreal na cabeça dos dirigentes. Vale salientar que esta falta de medicamentos é uma preocupação sistematicamente levantada pela Associação dos Profissionais de Saúde Unidos e Solidários de Moçambique (APSUSM).
“Faltam medicamentos para doenças como a malária e hipertensão arterial. Posso mencionar um exemplo recente na Beira (província de Sofala), em que utentes foram à televisão denunciar a falta de reagentes para fazer hemodiálise, o que consideramos gravíssimo”, disse no dia 07 deste mês a secretária-geral da associação, Sheila Chuquela.
É uma realidade alarmante, num país onde, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, citada pela organização Médicos Com África, as doenças crónicas não transmissíveis representam 28% das mortes, das quais 12% devido a doenças cardiovasculares, 3% a cancro e doenças respiratórias, 2% a diabetes e 7% a outras doenças crónicas. Ademais, e ainda segundo o mesmo organismo, 33,1% da população moçambicana é hipertensa.
Agravam-se problemas logísticos
Há muito que os hospitais deixaram de representar esperança, quer para os utentes, quer para os próprios profissionais. Se, vezes sem conta, os utentes são destratados e ainda se vêem na obrigação de recorrer aos serviços de saúde privados para obter medicamentos, os profissionais de saúde trabalham em grave situação de exposição, tudo porque o Estado não consegue disponibilizar itens básicos, como luvas.
Na prática, e conforme tem sido denunciado, os profissionais de saúde são obrigados a improvisar perante a falta de condições para não deixarem que os utentes regressem a casa sem o mínimo de atendimento. Confirmou-o Chuquela, salientando que, no Hospital Central da Beira, por exemplo, chega a faltar gesso.
Em hospitais de menor categoria, o caos é ainda maior. Frequentemente se constata a falta de medicamentos, luvas, gesso ou mesmo seringas. A isso juntam-se ainda a aparente incapacidade, pelo menos em hospitais de menor dimensão, de honrar os compromissos assumidos com as empresas fornecedoras de electricidade e água, o que leva a cortes que comprometem seriamente a assistência aos utentes.
Em 2023, por exemplo, os centros de saúde de Cumbana e Jangamo, na província de Inhambane, chegaram a funcionar sem corrente eléctrica por pelo menos três meses, segundo denunciou na altura o Observatório Cidadão de Saúde (OCS). Diante deste cenário, os profissionais de saúde, afectos à maternidade, eram obrigados a trabalhar com apoio das lanternas dos seus próprios telemóveis para assistir as mulheres grávidas no momento do parto. As parturientes, por sua vez, tinham de levar consigo velas, como se fossem ao Santuário Nossa Senhora de Fátima.
Outra consequência da falta de corrente é a dificuldade de conservação de uma série de víveres dependentes de refrigeração, e a impossibilidade de colocar alguns equipamentos a funcionar.
Desengane-se quem pensa que tais problemas são isolados. A insuficiência é transversal a todas as províncias de Moçambique, atingindo, pasme-se, alguns dos hospitais mais importantes da Região Metropolitana do Grande Maputo. Os hospitais gerais de Mavalane, José Macamo e ainda o de Chamanculo são frequentemente confrontados com a falta de aparelho para a realização de exame de raio- -X. As películas, importantes para a impressão do exame, são um problema crónico há anos e já praticamente foi oficializada a sua substituição pelos smartphones dos utentes.
Greves sem fim
Quando se pensava, há uns anos, que o quadro cinzento aqui pintado não podia piorar, eis que a Tabela Salarial Única surge como gatilho para ampliação da insatisfação dos funcionários de saúde, que, desde então, adoptaram a greve como mecanismo de pressão.
Ainda há duas semanas, e face à não resolução dos problemas constantes do seu caderno reivindicativo, a APSUSM veio a público ameaçar com mais uma greve, escassos meses depois da última, que, segundo relatos dos próprios grevistas, terá sido responsável pela morte de cerca de 1000 pessoas.
Os problemas que afligem a APSUSM e a Associação Médica de Moçambique (AMM) parecem não ter fim à vista. Aliás, são mais as vezes em que se ouve o Ministério da Saúde prometer sanções contra os grevistas – num país em que a greve é um direito – do que a falar de possíveis saídas.
Enquanto a arrogância impera, milhares de moçambicanos vão pagando com a vida.