Nas últimas semanas, vídeos e fotografias que circulam nas redes sociais têm exposto um grave problema ambiental em Moatize, na província de Tete. A mineração de carvão na área, conduzida pela empresa indiana Vulcan, resultou em níveis alarmantes de poluição que afectam directamente a saúde pública e o meio ambiente. Essa situação preocupa não só os moradores locais, mas também especialistas e activistas que alertam para o impacto devastador dessas actividades. É o caso de Ivan Maússe, para quem a Procuradoria-Geral da República devia agir em defesa das populações.
Texto: Milton Zunguze
Moçambique, como País, tem mostrado uma crescente sensibilidade em relação às questões ambientais, especialmente diante dos eventos climáticos extremos que se têm tornado mais frequentes. No entanto, a situação em Moatize revela uma contradição entre a legislação ambiental do País e a realidade vivida pelas comunidades locais. Para entender melhor o problema, o jornal Dossiers & Factos conversou com o jurista ambientalista Ivan Maússe, que enfatizou a necessidade de uma intervenção urgente do Ministério Público (MP), dado que os vídeos e imagens disponibilizados nas redes sociais confirmam a gravidade da poluição na região.
De acordo com a Lei nº 20/2014, de 18 de Agosto, Lei de Minas, o Governo tem a responsabilidade de proteger as comunidades que vivem próximas às actividades de exploração mineira, garantindo que essas actividades contribuam para o desenvolvimento socioeconómico das regiões afectadas. O artigo 13º da Lei destaca que essas protecções são fundamentais para o bem-estar das comunidades. No entanto, o cenário em Moatize parece estar em desacordo com esses princípios legais.
O direito ao ambiente está consagrado na Constituição da República de Moçambique, o que fortalece o argumento de Maússe de que as empresas do sector extractivo devem adoptar medidas eficazes para mitigar os impactos ambientais, especialmente em áreas residenciais próximas às minas. “É crucial que essas empresas implementem mecanismos para reduzir a poluição, principalmente onde há residências ao redor das áreas de exploração”, afirmou Maússe.
Problemas de incumprimento e desordenamento territorial
Ivan Maússe também levanta preocupações sobre o possível não cumprimento das normas ambientais por parte da Vulcan, ou ainda sobre a falha no ordenamento territorial que permite a existência de áreas residenciais tão próximas às zonas de mineração. “Moçambique precisa melhorar suas políticas de ordenamento do território e urbanização”, defendeu Maússe. O também activista acredita que a proximidade entre áreas residenciais e zonas de exploração industrial é resultado de políticas territoriais deficientes, que precisam de ser revistas urgentemente para evitar situações como a de Moatize.
“PGR deve agir”
Diante do cenário crítico em Moatize, Ivan Maússe defende que a Procuradoria-Geral da República (PGR) deve intervir de imediato. Para ele, essa intervenção é fundamental para proteger os direitos ambientais, que fazem parte dos “direitos fundamentais de terceira geração”. Maússe explica que as evidências visuais, como os vídeos e fotos, são provas suficientes para que o MP tome acção. “O MP não precisa de uma denúncia formal para agir em casos como este. As imagens são claras e mostram que há um problema sério de poluição naquela região”, afirmou.
Maússe também destaca que, apesar das evidências, é essencial que o MP conduza uma investigação técnica para confirmar a existência de poluição e determinar o grau de responsabilidade da empresa. “Nem tudo o que parece poluição é realmente poluição”, alertou ele. O papel do MP seria, portanto, crucial para avaliar a situação com base em dados técnicos e determinar as medidas legais cabíveis.
Responsabilização em três níveis
Quanto à responsabilização da empresa Vulcan, Maússe delineia três níveis de possível responsabilidade: criminal, civil e administrativa. No nível criminal, a empresa poderia ser responsabilizada por violar normas ambientais, o que inclui a poluição. No nível civil, a empresa teria a obrigação de compensar as populações afectadas, seja através de cuidados médicos ou outras formas de reparação. Finalmente, no nível administrativo, a empresa poderia enfrentar sanções impostas pelo Ministério da Terra e Ambiente (MTA) ou pelo Governo provincial, que poderiam incluir multas ou a suspensão de sua licença de exploração.
Segundo relatos de um residente de Moatize, que vive na cidade há cerca de 10 anos e preferiu não ser identificado, a poluição é um problema recorrente. Ele explica que sempre que ocorrem detonações nas minas, a poluição no ar é perceptível. “Quando há detonação, há poluição”, afirmou ele, acrescentando que as detonações não ocorrem diariamente, mas são programadas com antecedência. Esse planeamento levanta dúvidas sobre se o incidente recente foi uma falha técnica ou parte de um padrão mais amplo de negligência.
O morador também descreve a proximidade perigosa entre as áreas residenciais e a mina. “A separação é apenas uma rede. Um passo e você está na comunidade, outro passo e está na mina”, relatou ele. A falta de uma zona de amortecimento adequada entre a mina e as residências expõe a população local a riscos constantes, especialmente durante as detonações. Um dos problemas mencionados foi a impossibilidade de estender roupas ao ar livre sem que elas ficassem cobertas por partículas de carvão.
Impactos na saúde pública
Os impactos dessa poluição não se restringem ao ambiente, mas afectam directamente a saúde da população local. Uma médica ligada ao sector de saúde pública, que preferiu não se identificar, destacou os riscos que a população está a correr. “As pessoas estão a inalar minérios e até os consumindo de várias formas”, alertou ela.
A médica também lembrou que, em situações de exploração mineral, é comum haver projectos de reassentamento para proteger a população. Em Moatize houve reassentamento. Ainda assim, a população não parece estar à salvo.
A Lei de Minas, em seu artigo 36º, obriga os concessionários a realizarem acções de desenvolvimento social, económico e sustentável nas áreas de exploração. No entanto, a realidade em Moatize contrasta fortemente com essa obrigação legal. Os moradores expressam sua frustração nas redes sociais, resumindo a situação em frases como “estamos a morrer”. Um cidadão relatou que a contaminação do ar é tão severa que até mesmo piscinas limpas pela manhã estão cobertas de poeira preta ao final do dia.
Outro morador questiona se as autoridades estão cientes da gravidade da situação. “Será que os nossos políticos não vêem isso?”, perguntou ele, descrevendo como a poeira das detonações se espalha pela cidade de Moatize, afectando todos os que vivem na área.
Contactada pelo Dossiers & Factos, a mineradora Vulcan não quis se pronunciar via telefone.
Texto extraído na edição 575 do Jornal Dossiers & Factos