O sector madeireiro é fértil em polémicas, mas o caso da província de Sofala é sui generis, porquanto, e de acordo com informações em nossa posse, são os próprios “guardiões” da legalidade que tudo fazem para desvirtuar a lei e todos os valores ético-morais de uma sociedade civilizada. O caso mais recente tem que ver com a colocação para venda em hasta pública, esta sexta-feira, 27 de Dezembro, de enormes quantidades de madeira apreendidas de forma ilegal, segundo a empresa H&J Importação e Exportação, proprietária do produto.
Trata-se, em termos precisos, de 483,5 metros cúbicos de sândalo, 6.140,2 metros cúbicos de chacate-preto, 906 metros cúbicos de pau-preto, 1.377 metros cúbicos de monzo, 788,4 metros cúbicos de missanda, 1.145,9 metros cúbicos de panga-panga, 222,3 metros cúbicos de chanate e 80 metros cúbicos de chacate-preto em pranchas.
Há uma data de controvérsias em relação ao processo que culminou com a colocação desta madeira em hasta pública, mas, por uma questão de fluidez, convém começar do início, o que nos leva a Dezembro de 2022. Nessa altura, ciente de quão a exposição à chuva e ao sol acelera a depreciação, a H&J decidiu seleccionar a madeira mais valiosa e conservá-la em contentores. 45, ao todo.
Ao tomar conhecimento de tal facto, a Agência Nacional para o Controlo da Qualidade Ambiental (AQUA) ao nível de Sofala enviou uma equipa de inspecção que, peremptoriamente, passou multa de 10 milhões de meticais à empresa, acusando-a de “tentativa de exportação”, tendo de seguida iniciado as démarches para a apreensão da mesma, deixando a empresa incrédula.
“O processo de exportação tem suas formalidades, e os pontos de exportação são os portos, que por sinal são controlados pelo Estado. Logo, não é possível um cidadão comum ou qualquer empresa privada organizar seu produto e chegar ao porto dar entrada sem ter obedecido os trâmites legais”, lembra Mário Silva, administrador da H&J.
Não obstante a contestação imediatamente apresentada pela empresa, atacando a falta de fundamentos legais da AQUA, o certo é que esta entidade governamental não arrepiou caminho, acabando por colocar o produto – pouco mais de 600 metros cúbicos – em hasta pública em Dezembro de 2023.
Foi a “insuspeita” HT – em Sofala, diz-se que esta empresa vive à base de hastas públicas – quem adquiriu a madeira a um valor descrito por Mário Silva como irrisório, até porque “sequer corresponde à taxa que o Estado cobra aos operadores que cortam a madeira”. Concretamente, a madeira foi vendida a pouco mais de dois milhões de meticais, quando o seu preço de custo era de 30 milhões.
Era só o início
Desengane-se quem pensa que com a venda em hasta pública acabou o “pesadelo” da H&J. Na verdade, era apenas o início de uma série de episódios estranhos que, na opinião da empresa, consubstanciam “perseguição”. É que, após o levantamento da madeira, a H&J optou por dar férias colectivas de 30 dias aos seus colaboradores e encerrar temporariamente as portas. O objectivo, explica o administrador, “era reflectir sobre como passaríamos a trabalhar diante do ambiente instalado na Beira”.
Só que a empresa não conseguiu reflectir em paz. Volvidos apenas 15 dias, uma equipa constituída pelo procurador distrital, agentes do Serviço Nacional de Investigação Criminal (SERNIC) e o representante da HT deslocaram-se ao estaleiro da H&J. Porque estava apenas o segurança, contactaram uma outra funcionária da empresa, exigindo que esta fosse abrir o parque “porque nós queremos trabalhar”.
A resposta foi negativa, não só porque a empresa estava com as actividades suspensas, mas também porque a referida colaboradora encontrava-se distante da província de Sofala. Nenhum destes argumentos serviu, no entanto, para impedir que a mesma equipa, desta vez reforçada pela Polícia da República de Moçambique (PRM), retornasse no dia seguinte com a missão de invadir e apoderar-se de mais madeira.
“Arrombaram o portão que dá acesso ao estaleiro e efectuaram carregamentos de madeira nos dias dois, três e quatro, num volume total de 402 metros cúbicos”, lê-se na exposição feita pela empresa, a que Dossiers & Factos teve acesso. Para tal, socorreram-se de um mandado de busca e apreensão emitido pelo Tribunal Judicial do Distrito de Dondo, que por sinal ordenava a apreensão de “apenas” 188 metros cúbicos.
Outrossim, diz a empresa, tal mandado foi emitido sem que houvesse qualquer processo, o que evidencia que visava apenas “conferir autoridade aos servidores públicos que pretendiam satisfazer interesses pessoais sob a capa do Estado”.
E a saga continua…
Após a segunda apreensão, classificada por Mário Silva como “roubo”, a H&J decidiu colocar à venda toda a madeira que ainda sobrava no estaleiro, temendo novas incursões da coligação HT/AQUA/PGR. Para o efeito, solicitou autorização ao Serviço Provincial do Ambiente e remeteu as guias relativas ao produto. Mas nem com isso se conseguiu livrar da “perseguição”.
Segundo conta a empresa, volvidos apenas dois dias, fiscais da AQUA fizeram-se novamente ao seu estaleiro, fora das horas normais de expediente, para passar uma nova multa, desta feita de 100 mil meticais, com a criativa alegação de que a empresa não tinha documentos.
“Os documentos existem, mas sucede que os fiscais foram fora das horas normais do expediente e lá só estavam os seguranças. Ora, os seguranças não ficam com documentos”, rebate Mário Silva, reproduzindo parte do teor da reclamação submetida à Delegação Provincial da AQUA.
Alegando extemporaneidade, a AQUA Sofala não acolheu a reclamação, o que forçou a empresa a fazer um recurso hierárquico junto à AQUA central, que por sua vez, e depois de solicitar e analisar os documentos da H&J, decidiu-se pela anulação da multa, para a revolta da PGR.
“Quando a H&J entendia que terminou a confusão, veio a surpresa da PGR, que ao tomar conhecimento da anulação da multa, submeteu uma providência cautelar ao Tribunal Administrativo da Província de Sofala para a suspensão da eficácia da decisão tomada pela Direcção Geral da AQUA, cujo fundamento assenta na presunção de que a madeira é ilegal. Paralelamente, alegou ter aberto processo de averiguação na sequência de denúncia que recebeu de operadores florestais que reclamam existência de ilegalidades no estaleiro, sendo estes fundamentos suficientes para a não devolução do produto ao proprietário”, descreve, estupefacta, a H&J, que diz nunca ter sido notificada pela PGR, apesar de esta alegar ter o processo em curso há mais de um ano.
Vender a todo o custo… não interessa a lei
Através de uma nota publicada no jornal Diário de Moçambique, edição de 19 de Dezembro, o Serviço Provincial do Ambiente (SPA) deu conta de que o último lote de madeira apreendida seria vendido em hasta pública no dia 27 de Dezembro do presente ano, portanto, quinta-feira. Trata-se de um processo problemático e que suscita muitas questões de ordem legal, pelo menos aos olhos da H&J.
A primeira grande questão tem que ver com o facto de a empresa ter recorrido da decisão do Tribunal Administrativo que suspende a eficácia da decisão da AQUA Central, que anulara a multa e, por consequência, restituía a madeira ao legítimo proprietário. Este recurso da H&J (submetido ao TA ao nível da cidade de Maputo) ainda não conhece resposta, pelo que não faz sentido avançar para já com a venda, até porque o recurso tem efeitos suspensivos.
“Não se pode mexer no produto enquanto não houver decisão de instância superior àquela que foi recorrida (qualquer decisão para o destino do produto só faz sentido após o TA, na sua 1.ª Secção de Maputo, tomar decisão sobre o processo, porque já não é competência do TA de Sofala)”, argumenta a empresa.
Por outro lado, e bem vistas as coisas, o SPA só concedeu cinco dias para que potenciais interessados se desloquem ao estaleiro para apreciar a madeira e depois preparar as devidas propostas. É que a nota que anuncia a hasta pública data de 18 de Dezembro, com a abertura das propostas prevista para 27 de Dezembro. O tempo transcorrido de uma data à outra é de 9 dias. Se subtraídos os dias não úteis (sábado e domingo) e os dias 24 e 25 (tolerância de ponto e feriado por ocasião do Natal, respectivamente), restam cinco dias, tempo considerado insuficiente para a complexidade de um processo desta natureza.
Tudo isso legitima a percepção da empresa de que o comprador foi previamente identificado, pelo que o anúncio no jornal foi uma “mera formalidade”.
Acresce-se a isso, como referimos anteriormente, o facto de o GCCC ter “perdido” o processo atinente à participação submetida pela H&J, bem como o facto de a PGR estar há mais de um ano a fazer uma averiguação da qual não se conhece nenhum detalhe. De resto, a denúncia que sustenta a suposta investigação não reporta qualquer crime, limitando-se apenas a falar de irregularidades sem especificá-las.
Chama ainda atenção a curiosa circunstância de o documento de denúncia, da autoria de “um grupo de operadores de Sofala”, conter várias rubricas provenientes do mesmo punho.
O sector florestal em Sofala transformou-se, ao que parece, numa verdadeira feira de ilegalidades, com os “guardiões” da Lei a serem os principais expositores.