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VENDA DE LICENÇAS MADEIREIRAS: Espécies proibidas são alvo de abate em cemitérios em Sofala

Há envolvimento de elites políticas e líderes tradicionais

Acrescente comercialização de licenças de exploração madeireira a operadores de origem asiática, associada à corrupção, está a propiciar o desenfreado abate de espécies em locais proibidos em várias comunidades ao nível da província de Sofala. Esta prática, que configura ilícito criminal, envolve figuras públicas e membros influentes do partido Frelimo e ainda líderes tradicionais.

Texto: Dossiers & Factos

De acordo com os nossos entrevistados, tudo começa com a aquisição das novas licenças de exploração de madeira junto ao Departamento de Florestas, na Direcção Provincial da Agricultura. Relata-se que, com forte influência de dirigentes do Governo do dia e lideranças locais, supostos proprietários das áreas de exploração adquirem licenças e, a posterior,  alugam-nas aos “furtivos”, muitos deles de origem asiática. Com aval político do topo à base, procedem ao abate indiscriminado de espécies nativas.

As licenças de exploração atribuídas pelo Departamento de Florestas somente indicam a dimensão, em metros cúbicos, do espaço a ser explorado pelos madeireiros, que pagam uma taxa única para o efeito. Por exemplo, a taxa pela exploração de 1500 metros cúbicos de várias espécies, o que equivale a cinco camiões, pode chegar aos 750 mil meticais.

Só que, no terreno, o cenário é diferente. É que a contabilização já não se faz em metros cúbicos, mas em função da quantidade de carregamentos. Um camião cavalo, por exemplo, pode levar 500 metros cúbicos de madeira de espécie monzo, uma das mais procuradas, o que pode valer entre 350 mil a 500 mil meticais ao furtivo.

Pelo uso da licença do suposto dono da área, este chega a cobrar mais, pois a mesma licença pode ser usada para explorar em diferentes comunidades, desde que seja na área atribuída.

Profanação do sagrado em nome do dinheiro

Devido à escassez de algumas das espécies mais cobiçadas em campos florestais, os furtivos mudaram de campo de acção, passando a atacar cemitérios tradicionais. Dados em nosso poder indicam que pelo menos sete cemitérios tradicionais foram alvo de invasão pelos furtivos, deixando as comunidades mais empobrecidas.

Os distritos de Caia e Chemba são os que mais registaram casos de saque de madeira nos cemitérios tradicionais. O mais recente deu-se na localidade de Mulima, a 80 km da vila-sede local.

Marino Denja é um dos operadores apontados pela comunidade como autor de transacções de licenças e cemitérios tradicionais com exploradores de origem asiática, em conluio com as lideranças e régulos locais. Denja é membro da Frelimo em Chemba e parente do vice-ministro do Mar, Águas Interiores e Pescas, Henriques Bongesse, que também já foi primeiro-secretário da Frelimo em Sofala.

Também na zona Sueiro, um ex-líder comunitário concedeu uma autorização urgente em tempo chuvoso para um explorador ainda por identificar para derrubar várias árvores que ficavam nas imediações do cemitério comunitário. O corte resultou no carregamento de três camiões, sendo que um deles enterrou à saída. Os outros dois camiões  correram em direcção a Maringué, tendo sido neutralizados por uma força conjunta de fiscais do  posto de Chawawa. Mais tarde, os três camiões foram libertos e a madeira desapareceu do Posto Policial.

“A madeira foi tirada no cemitério do regulado de Sueiro, foi em princípio de Fevereiro deste ano (2023), o camião era de pessoas poderosas e não tinham como impedi-lo. O régulo recebeu dinheiro e fugiu”, disse Felizardo Chawawa, presidente do Comité de Gestão dos Recursos Naturais local.

O líder Artur Sueiro, que autorizou o corte de madeira após a suposta recepção de dinheiro de madeira, desapareceu da sua comunidade por um período de três meses. Sabe-se, no entanto, que após o seu reaparecimento, foi destituído do poder sem sequer passar por uma responsabilização.

Já no regulado de Nhamaliwa, um jovem régulo mandou cortar madeira também num cemitério comunitário, mas acabou espancado pela população. Sete Pereira, 27 anos de idade, foi igualmente destituído, ascendendo o seu irmão mais velho ao posto de régulo. É acusado pela população local de corrupção e abuso de poder.

Sete Pereira facilitou a retirada de madeira sem seguir as devidas normas a dois exploradores, nomeadamente Chico Luís Braz e Lurdes Benjamim Oface, ambos membros da Frelimo e com alta influência nos governos de Chemba e Maringué, norte de Sofala.

“O distrito sabe porque é que o meu irmão foi destituído. Ele é corrupto e recebia dinheiro em troca de favores aqui. Esta última, a operadora Lurdes Benjamim, teria abandonado as obras de umas salas de aulas que construía na EPC de Nhamaliwa. Numa das salas agora só restaram duas estacas”, disse Felisberto Pereira, líder comunitário.

Com a liderança de Sete Pereira, estes dois operadores tinham anualmente suas licenças de exploração renovadas mesmo sem cumprimento de suas obrigações. Búfalo Augusto Jessinao, membro da sociedade civil na localidade de Mulima, distrito de Chemba, e filho do antigo líder, da família Mulima, explica que é visível e alarmante o que está a acontecer na região.

“Nesse momento que estamos a conversar, as motosserras estão a roncar no cemitério e num local sagrado, onde acorremos para cultuar em pedido de chuva e outras benesses para a comunidade”, disse Búfalo

“Recebi 1.200 milhões , estava em causa a fome”

Bartolomeu Zeca Mulima, régulo na região do Mulima, reconheceu que ter recebido um milhão e duzentos mil meticais das mãos de Mariano Denja, dono da licença para exploração de madeira na região.

O valor foi repartido entre 10 pessoas do seu regulado, no caso familiares directos. “Fome foi o principal motivo da venda daquele cemitério, e recebi os valores do senhor Mariano Denja” confirmou o régulo.

No entanto, as autoridades distritais ligadas à gestão da Floresta e Fauna, a Procuradoria e Governo Distrital recusaram-se a falar sobre este assunto, alegando carecerem de autorização do nível provincial.

“Estavam com fome, foi por isso que lhes dei dinheiro”

Marino Denja, operador florestal com uma área de concessão de 12.064,5 hectares, confirma que pagou ao regulado o valor de mais de um milhão de meticais para ter acesso à área de exploração, pois a comunidade se desesperava por alegada fome.

“Dei, sim, porque estavam a chorar de fome. Eu, como queria ter acesso às áreas, tive que pagar um milhão de meticais para se distribuírem entre eles”, confirmou.

Segundo apurou a nossa reportagem, a licença de Marino Denja dá-lhe acesso a três espécies de madeiras preciosas, nomeadamente mondzo, chate preto e chanate, consideradas as madeiras mais caras no mercado asiático.

“É Crime explorar madeira em locais históricos ou cemitérios”

O chefe do Departamento de Florestas e Plantações Agro-florestais da Direcção Provincial da Terra, Ambiente e Desenvolvimento Rural em Sofala, Paz Martinho, avança que, no ano em curso, apenas nove dos 36 exploradores florestais tiveram as suas licenças autorizadas, pois muitos deles não conseguiram tratar documentos a tempo.

Paz Martinho, que falava à nossa reportagem, reconheceu a importância destes exploradores continuarem a trabalhar nas comunidades, mas condenou as práticas ilícitas de muitos deles ao cortar madeira em locais proibidos por lei.

“É crime cortar madeira em locais históricos ou em cemitérios. Aquele que for encontrado a fazer isso será severamente penalizado, ser-lhe-á arrancada a madeira e revertida a favor do Estado e multado”, garantiu.

Questionado sobre o caso de Marino Denja, que pagou valores ao régulo e retirou madeira em locais proibidos, este respondeu nos seguintes termos. “Será notificado pelos serviços e corre risco de ver apreendida a madeira e caçada a sua licença, podendo voltar a operar assim que pagar as multas ao Estado. O que ele está a fazer constitui um crime”, sublinhou.

A Lei de Florestas, que estabelece os princípios e normas básicos sobre a protecção, conservação e utilização sustentável dos recursos florestais e faunísticos, explica, no artigo 13º, como deve ser feita a exploração destes recursos nos lugares históricos. Estipula que a utilização comercial da fauna bravia pode ser praticada em modelo de parceria entre comunidade e o sector privado, onde as comunidades são agentes de fiscalização e o privado responsabiliza-se pela criação parcerias de geração de rendimento (caça cinegética, caça desportiva, safari) e os benefícios são compartilhados mediante um acordo pré-estabelecido.

Contudo, neste momento, as comunidades de Mulima, Nhamalia e Chivulivuli, no distrito de Chemba, clamam pela protecção dos seus recursos naturais que estão literalmente em saque.

Comunidades reconhecem haver desordem

“Esta floresta sempre existiu aqui e usamos este local para várias coisas sobre a nossa tradição, incluindo invocação de espíritos em caso de crise, fome, chuva, etc”, disse Domingos Jo Vicente, residente mais velho do regulado de Mulima.

Vestido de balalaica, Domingos Jo, de 73 anos de idade, visitava os seus ente-queridos, quando interpelado, contou-nos estar indignado diante da destruição destes locais considerados sagrados e históricos por simples ambição.

“Há pessoas com poderes no Governo distrital que vieram e, através de régulos, receberam ordens para cortar madeira aqui. Neste local foram enterradas várias figuras do nosso regulado e até alguns padres, colonos que estavam aqui em missão. É triste”, lamentou Martinho Francisco, também do posto administrativo de Mulima.

Martinho, com a sua enxada e camiseta do partido no poder, diz ainda que espera haver respeito e que as autoridades fiscalizadoras intervenham nesta situação que diz ser anormal. Lembra, no entanto, que quem devia fiscalizar também está no esquema.

“Marino Denga é quem está a fazer isto aqui e nós estamos a pedir para ele parar. Este senhor recebeu dinheiro do “China”, cidadão de origem asiática, e veio cá corromper o líder local para retirar madeira deste cemitério”, frisou.

Combate deve ser multissectorial

Os concessionários e operadores são da opinião de que a corrupção e os desmandos que grassam no sector da exploração de recursos florestais no País devem ser combatidos através de uma acção multissectorial envolvendo a Polícia República de Moçambique (PRM), que deve fiscalizar as cartas de condução de viaturas que transportam madeira, os Serviços de Migração, a quem compete controlar o Documentos de Identificação e Residência de Estrangeiros (DIRE) e o sector do Trabalho, que deve inspeccionar os contractos.

O presidente da Associação dos Operadores Florestais da província de Sofala, Ocas Mussagi, aponta, por outro lado, dificuldades para colocar produtos acabados no mercado nacional e identifica a mobília de madeira importada como o principal obstáculo ao negócio. Assim, propõe a aplicação de sobretaxa aos produtos de madeira importados.

A fonte diz que, por conta da proliferação da mobília de madeira importada, os investimentos feitos nas indústrias de processamento não têm retorno, o que pode levar à falência.

Para os operadores florestais, só há uma saída para alavancar as suas economias, bastante afectadas pelo ciclone Idai e pela COVID-19: o Estado devia aplicar uma quantia suplementar à tarifa ordinária exigida na importação de produtos de madeira importados.

Estes entendem igualmente que o Estado devia impor que todas as suas obras sejam apetrechadas com madeira produzida internamente.

Outro dos problemas apontados é o suposto surgimento de empresas de fiscalização e exploração de madeira em Sofala, que não têm nenhum aval do governo, mas impedem os operadores florestais de trabalhar. “Vocês sabem muito bem de quem são as empresas e prefiro não comentar”, disse Ocas, antes de questionar:

“Como é que aparece uma empresa estranha e controla o processo de exportação de madeira na região, da AQUA? Não vês que há alguma coisa que não está clara aqui? De quem é a empresa? De onde surgiu? Vai à [sector da] agricultura ou floresta e procura saber dos dados desta empresa fantasma que passou a fazer o trabalho do governo?”, recomendou.

A nossa equipe de reportagem dirigiu-se à Agência Nacional para o Controle da Qualidade Ambiental (AQUA), tendo recebido indicação de que devia dirigir uma carta à Direcção Provincial, que por sua vez a encaminharia ao Ministério para responder a quaisquer questões relacionadas com a fiscalização ambiental em Sofala.

Procuradoria provincial e GPCC não falam

Na mesma senda, nossa reportagem dirigiu-se à Procuradoria Provincial de Sofala para procurar obter mais dados sobre casos ligados à corrupção no sector florestal, mas não obteve sucesso. Da secretaria do Gabinete da Procuradoria, recebemos a informação de que esta instituição não detinha dados específicos ligados à corrupção no sector florestal, pelo que aconselhou-nos a abordar o Gabinete Provincial de Combate à Corrupção (GPCC).

“Senhor jornalista, recebemos informação da digníssima procuradora provincial para que se dirijam ao GPCC para poderem obter mais informações relativas ao vosso pedido de informação, nós não temos estes dados”, disse a secretária da Procuradora.

Assim procedemos, nos mesmos moldes, mas o GPCC não quis dar nenhuma informação.

“Estamos a caminho de viver tragédias repetitivas de ciclones”

A ambientalista Micaela Bunguer, que também é activista social para a área do meio ambiente, alerta que o abate indiscriminado de árvores, principalmente em zonas proibidas, pode contribuir para a origem de novos fenómenos extremos, uma vez as árvores frondosas que existem estão a proteger a terra e o ambiente.

Micaela disse ainda que é preciso que se tenha consciência deste mal que afecta as comunidades, sob pena de, num futuro breve, estas zonas desaparecerem.

“Praticamente, em Sofala não existem mais florestas. Não temos mais florestas protectoras do meio ambiente, por isso estamos agora a viver os ciclones repetitivos ”, disse .A ambientalista avança que é preciso que as autoridades reguladoras da conservação destes recursos florestais entendam que estamos a caminhar para um período mau para o ambiente e para a terra: “Nós podemos desaparecer a qualquer momento por falta destas florestas que hoje estamos a destruir”, insiste, lembrando que há mecanismos legais que protegem as florestas, mas que não são implementados por vários factores, entre eles a corrupção e a pobreza nas comunidades.

Há trabalho por ser feito junto das lideranças locais

Por sua vez, Cheila Rafi, directora geral da Livalingo, ONG que trabalha na área de protecção florestal, encontra na pobreza o motivo principal para que haja cenários de venda de locais sagrados das comunidades, visto que muitos líderes são colocados a controlar vastas áreas de florestas e de recursos minerais que, na prática, não beneficiam as comunidades.

“Há muito trabalho por ser feito junto das lideranças locais, os líderes sofrem aliciamento dos supostos madeireiros. A fiscalização também conta, mas o principal problema é a pobreza. Há líderes com varias áreas a conservar, mas que nem bicicletas possuem, então, é complicado”, disse Cheila, acrescentando ser necessário sensibilizar as lideranças locais a respeitarem os seus recursos.

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